Uma das fotos da campanha de inverno da Givenchy é essa aí do lado. A grife francesa contratou nove modelos, entre homens e mulheres, a maioria deles propositalmente bastante andróginos. Um deles é Lea T, que se destaca na foto de ombro desnudo e batom vermelho escuro. É também a única de salto. Isso é importante.
Lea é assistente pessoal de Riccardo Tisci, estilista da marca, que costuma trabalhar com essa relação anti-dicotômica entre masculino e feminino. Apesar da estreita convivência com o mundo da moda, estudava veterinária e aceitou o convite para estrelar a campanha por amizade. A recém-descoberta modelo também desfilou alta-costura para a Givenchy.
Depois disso, foi destaque na Vanity Fair italiana e considerada uma das apostas do momento pela Vogue francesa. Um perfil bem escrito com uma foto corajosa, que tenho minhas dúvidas que a Vogue americana ou a brasileira publicassem. Lea está nua e omite/revela que a nova estrela da agência Women nasceu Leandro.
Quando elogiei a foto em público, vi muitos narizes torcidos. Nos sites que permitem comentários, várias reclamações (sem falar nos religiosos ofendidos de plantão). “A foto é feia”, diziam, ou “só pra chocar”. Evidentemente que o retrato na Vogue não tem a intenção de ser belo nos padrões clássicos pré-estabelecidos. A riqueza está na construção da foto, em que o significado (conteúdo) se sobressai sobre o significante (forma). Num mundo de aparências, Lea aparece exatamente como é: nua, sem maquiagem, cabelos longos, seios femininos e um órgão masculino que tenta esconder (certamente incomoda muito mais a ela do que a você, pudico leitor).
Por que será que incomoda tanto? Talvez porque o corpo seja uma das formas mais efetivas de controle. Foucault falava dos “corpos dóceis”, voltados à disciplina, submissos, controlados. O corpo de Lea T é transgressor. Ao abrigar em si o masculino e o feminino, constrói uma subjetividade que foge dos papéis impostos pelo e ao “sexo biológico” e rompe com normas de comportamento e estética.
O que faz uma mulher? Em entrevistas, Lea conta que fará cirurgia para mudar de sexo e adequar seu corpo a sua psiqué. Como já disse em outro post, o corpo visto como uma dádiva divina e intocável não existe mais. Hoje o corpo é um projeto humano, o que permite até mesmo a mudança de sexo. Sem falar que a questão reascende velhos debates: alma x corpo x razão x natureza. Ainda que inconscientemente, mexer em idéias cristalizadas assusta.
Parabéns a Carine Roitfeld, pela ousadia e por acreditar, além do discurso batido, que, sim, a moda também tem a ver com mentalidades.